quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Em companhia de Tchecov

Inicialmente Tchecov me deu pesadelos. Tudo era real demais pra ser mentira. A cada conto que lia eu ficava mais impressionada. Como é que eu podia me envolver tanto com uma estória sem final? Mas aí comecei a perceber que o que me incomodava era justamente isso: a fidelidade com que ele retratava um dos fatos mais cruéis sobre a vida, a saber, que ela sempre continua. Quando lemos uma estória, sempre esperamos uma determinada estrutura mais ou menos estabelecida. Normalmente ela apresenta um conflito, que se desenvolve, atinge um clímax e se resolve. Damos-nos por satisfeitos quando esse fechamento nos é dado, mesmo que ele seja triste, sádico, cruel ou medonho. Quando fechamos o livro, o conflito é passado. Não sofremos pensando no que irá acontecer a seguir com aquelas pessoas porque não irá acontecer nada, a história delas acabou ali. Mas a vida real... ah, a vida real tem a péssima mania de continuar. Vivemos um conflito, ele se desenvolve, atinge um clímax, se resolve, bem ou mal, e...? Acordamos e temos que continuar fazendo tudo que se espera de nós: comer, falar, dormir, pensar, comprar, pagar, arrumar, dirigir, trabalhar, teclar. Somos obrigados a “viver” novamente, como se o conflito não tivesse existido, como se não tivéssemos sido tocados no mais fundo da nossa alma, como se não tivéssemos o direito a uma pausa, a um minuto de silêncio. Ou o direito de encerrar aquele “livro” e começar outro, na pele de outra personagem. É quase um desrespeito. Mas Tchecov foi impiedoso e transportou a vida para a ficção. Exatamente como ela é: sem final.

Não surpreende, portanto, o que Tchecov diz sobre si mesmo e sobre o ato de escrever em suas cartas:

Que o mundo fervilha com escória masculina e feminina é perfeitamente verdadeiro. A natureza humana é imperfeita. Mas pensar que a missão da literatura é colher o grão puro no monte de estrume é rejeitar a própria literatura. A literatura artística é assim chamada porque descreve a vida como realmente é. Sua meta é a verdade – incondicional e genuína. Um escritor não é um confeiteiro, nem um comerciante de cosméticos, nem um artista do teatro de variedades; é um homem compelido pela necessidade de cumprir seu dever e por sua consciência. Para um químico, nada na terra é sujo. Um escritor deve ser tão objetivo quanto um químico.

Além da ausência de final, toda essa crueza também está lá: a vida como ela é. E o leitor percebe isso logo de cara e sente-se mal, sente-se nu vendo todas as suas vergonhas expostas ali sem autorização. Nossos pensamentos mais mesquinhos, nossos sentimentos mais inconfessáveis, nossa preguiça e nosso torpor diante da vida, está tudo lá. Os pecados são todos iguais, não importa a época, não importa a latitude. Mesmo nunca bebido samovar (chá) ou nunca tendo andado de carruagem, sinto na carne as dores do bispo Piotr, do professor Nikitine, do casal Laievski e Nadiedja Fiodorovna. Dói-me especialmente lembrar do jovem Kounine, no conto “Pesadelo”... Acho engraçado que seja assim, que a boa literatura, a “literatura artística”, como ele chama, seja aquela que nos faz sofrer. Engraçado porque é um sofrer que alivia, ao invés de pesar.

Obrigada, Tchecov. Obrigada por não ser um confeiteiro.

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